A Gol Linhas Aéreas entrou com pedido de recuperação judicial nos Estados Unidos nessa quinta-feira (25). A medida, que vale para a companhia e para as subsidiárias no País, deve trazer mudanças na operação.
Diante desse cenário, é possível afirmar que os voos administrados pela empresa devem ser afetados, inclusive no Brasil?
Segundo a própria Gol, não. Segundo Fato Relevante divulgado pela empresa a acionistas, o pedido visa “levantar capital, reestruturar as finanças e fortalecer operações comerciais no longo prazo, enquanto continuam a operar”.
Com isso, todas as operações da companhia aérea, que incluem voos, acordos codeshare e interline com outras empresas, bem com o Smiles, programa de pontos da Gol, serão mantidas normalmente.
Apesar disso, especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste divergem acerca da repercussão que o pedido da companhia, e acreditam que, mesmo com o mercado aéreo em franca expansão após o período crítico da pandemia, a expectativa é de que o pedido da Gol traga efeitos em curto e médio prazo no Brasil.
Foco na estruturação
A professora doutora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Viviane Falcão, pesquisadora na área de transporte aéreo e aeroportos, acredita que a Gol necessita do empréstimo para honrar com as garantias de curto prazo e poder focar na estruturação da companhia em um horizonte mais amplo.
“O problema é se esse financiamento não fosse aprovado e a Gol quebrar. Da maneira como está agora, muito provavelmente pode ser um benefício para a gente, porque eles podem investir em novas rotas. A companhia aérea como um todo trabalha no mínimo, não tem um lucro muito alto. Com a pandemia, as companhias tiveram muitos problemas, dividendos e rotas que pararam de acontecer. A Gol, sabendo que tem a demanda, fez a solicitação de recuperação judicial para investir esse dinheiro”, observa.
O pensamento “a longo prazo”, como enfatiza Viviane Falcão, indica que a companhia aérea está de olho em uma demanda subutilizada principalmente no mercado local, como o Ceará. Até o início de 2020, a Gol mantinha no Aeroporto Internacional de Fortaleza um hub, que em parceria com a Air France-KLM, incrementou a oferta de destinos na capital cearense.
A Gol está pensando no longo prazo. O que a gente está vendo é o mercado em franco crescimento. Não tem aeronave suficiente para confeccionar tamanha a demanda. A Gol está tentando mais uma vez ter seu lugar no mercado brasileiro. Com isso, ela vai conseguir investir em mais rotas e destinos e há demanda aeroportuária, mesmo com as altas das passagens.Viviane Falcão
Professora doutora da UFPE e pesquisadora na área de transporte aéreo e aeroportos
Ceará no prejuízo
Na contramão da pesquisadora da UFPE, o colunista de aviação do Diário do Nordeste, Igor Pires, vê um cenário negativo em 2024 com a recuperação judicial da Gol, mesmo que seja nos Estados Unidos, e relaciona o ceticismo com o próprio perfil da companhia aérea.
Igor Pires relembra o assunto tratado no fim do ano passado com a Fraport, empresa alemã que administra o Aeroporto Internacional de Fortaleza, que esperava o incremento de frequências diárias da Gol na capital cearense para 2024, com a possibilidade de chegada de até mais um milhão de passageiros em comparação com o movimento atual.
“A Gol pode cortar um monte de coisas que ela tinha planejado para 2024. O que seria para o Ceará: a Fraport desenhou um incentivo em que a Gol chegaria a colocar até 1 milhão de novos clientes no Ceará. É um impacto direto, e na minha visão, isso pode estar ameaçado. Fortaleza deixou de ser uma base principal e entendo que agora ela vai hiper concentrar, vai deixar os voos de hubs para as cidades, virá dificilmente com coisas muito novas”, alerta.
Se antes de 2020, início da pandemia de Covid-19, a base da Gol no Nordeste era em Fortaleza, hoje a empresa mantém o hub no Aeroporto Internacional de Salvador, mas Igor Pires acredita que até mesmo o centro de conexões na capital baiana pode estar ameaçado, muito pelo comportamento reticente da empresa aérea.
Salvador é o hub do Nordeste, será que a Gol vai manter a pujança de Salvador? O histórico da Gol mostra que ela é muito insegura, ela vai para a frente e dá uns passos para trás. Para o Ceará, a base já não é a principal, e para reduzir aqui, é rápido, porque não tem conectividade. A dúvida é sobre o que acontecerá com Salvador. A Gol sempre falou que estava cheia de aviões para receber, e será que vai ter impacto em leasings?Igor Pires
Colunista do Diário do Nordeste
Como ficam os credores?
Do ponto de vista judicial, Pedro Cabral, advogado da DBS Advocacia e especialista em direito empresarial, acredita que não haverá impactos na operação da Gol no Brasil, exceto por decisão da justiça dos EUA.
“A não ser que saia uma ordem do tribunal de lá vinculando os credores que são dos EUA e do Brasil, e o acordo lá englobar os contratos aqui. Havendo uma negociação que envolva os créditos daqui e de lá, haverá uma comunicação com o Judiciário estadunidense com o Judiciário brasileiro para fazer valer os acordos feitos nos Estados Unidos”, destaca.
Pedro Cabral volta a ressaltar que “não há afetação direta” para o Brasil com a recuperação judicial da companhia aérea nos EUA, mas isso não significa que os credores brasileiros não serão afetados.
“No Brasil, não tem como a justiça americana vincular a decisão para os credores daqui, mas pode existir um reflexo na estrutura de garantia dos contratos. Se ela prestar garantias lá que já eram prestadas aqui, como aeronaves e imóveis, podem ser dados lá como garantia também. Em tese, não há uma afetação direta, mas principalmente na parte das garantias, pode haver uma fragilização para os credores nacionais”, pontua o advogado.
Como ficam os consumidores?
Cláudia Santos, advogada e presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da Ordem dos Advogados do Brasil no Ceará (OAB-CE), esclarece que “o pedido de recuperação judicial significa que a empresa passa por problemas financeiros e esse pedido será para reestruturar, não significa a falência”, e ressalta que a relação entre a Gol Linhas Aéreas Inteligentes S.A. no Brasil e os consumidores devem permanecer a mesma.
A empresa deve cumprir os contratos de prestação de serviço normalmente. Isto é, não pode suspender a prestação do serviço. As normas e regras do Código de Defesa do Consumidor devem continuar sendo respeitadas e obedecidas. Em caso de reclamação por parte do consumidor; o consumidor deve procurar a empresa e, se o problema não for resolvido, ele pode registrar sua reclamação na plataforma consumidor.gov ou nos órgãos de defesa do consumidor.Presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-CE
Rombo bilionário
As dívidas da empresa podem chegar perto dos R$ 20 bilhões, conforme dados divulgados pela companhia em setembro de 2023, e boa parte desse valor está relacionada a débitos a serem pagos a curto prazo, isto é, em até 12 meses.
“A Gol utilizará esse processo para reestruturar suas obrigações financeiras de curto prazo e fortalecer sua estrutura de capital para ter sustentabilidade no longo prazo”, completa a companhia no texto do Fato Relevante.
O mecanismo adotado pela empresa foi o chapter 11 no Tribunal de Falências dos Estados Unidos. Com isso, a companhia mantém a recuperação judicial, mas garante que continue funcionando enquanto busca medidas para a saída da crise, como a captação de recursos.
Ainda no Fato Relevante, a Gol informou que entrou com o processo garantindo “um compromisso de financiamento de US$ 950 milhões (mais de R$ 4,6 bilhões), na modalidade debtor in possession (“DIP”) por membros do Grupo Ad Hoc de Bondholders da Abra e outros Bondholders da Abra”, grupo no qual a empresa faz parte.
“O financiamento está sujeito à aprovação judicial e, juntamente com o caixa gerado pelas operações em curso, fornecerá liquidez substancial para apoiar as operações, que seguem normalmente, durante o processo de reestruturação financeira”, acrescenta a empresa.