O desenvolvimento de uma ferrovia que transporte passageiros entre Fortaleza e Sobral, anunciada pelo governo federal como parte de um plano nacional para o desenvolvimento do setor, ainda passará por estudos, mas especialistas apontam observações para o sucesso do projeto. Na análise de pessoas ligadas ao setor de transportes, a previsão de que os trens utilizados não sejam de alta velocidade pode representar um problema que pode inviabilizar a locomoção de brasileiros por via-férrea.
Como anunciado na última quarta-feira (9) pelo ministro dos Transportes, Renan Filho, seis ferrovias estão em estudo de viabilidade para uma possível concessão para a iniciativa privada, dentre elas o ramal Fortaleza x Sobral. Como reforçado pela pasta por meio de nota, não há confirmação se essas linhas férreas poderão de fato ser executadas.
Os problemas trazidos por especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste vão desde a pouca infraestrutura existente nas capitais, bem como compartilhamento de vias, até a possível construção e operação das linhas 100% a cargo da iniciativa privada, sem contrapartida do poder público.
As seis linhas regionais em estudo interligam capitais estaduais a importantes polos dentro do mesmo Estado, ou duas cidades consideradas polos regionais, geralmente também dentro da mesma unidade da federação:
- Fortaleza x Sobral (Ceará);
- Londrina x Maringá (Paraná);
- Pelotas x Rio Grande (Rio Grande do Sul);
- Salvador x Feira de Santana (Bahia);
- São Luís x Itapecuru (Maranhão);
- Brasília (Distrito Federal) x Luziânia (Goiás).
Compartilhamento deficiente
Algumas das ferrovias que estão na mira do Governo Federal para receberem trens de passageiros já existem, e são atualmente utilizadas quase que exclusivamente para o transporte de cargas, como a própria linha Fortaleza x Sobral.
A linha férrea é administrada pela Ferrovia Transnordestina Logística (FTL), que ainda também opera ramais que interligam Sobral, no Ceará, a São Luís, no Maranhão. No trecho que passa pela cidade cearense, a via é compartilhada com a linha sul do VLT de Sobral.
O coordenador de Mobilidade Urbana do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Rafael Calabria, avalia a situação como “muito grave” no caso de os projetos pilotos preverem o compartilhamento de vias férreas. Para ele, é necessário haver a separação para trazer maior eficiência nas operações.
“Já pressupomos que um dos resultados vai ser demonstrar o quão é ruim esse compartilhamento de vias. O ideal, no futuro, é a gente pensar em linhas dedicadas ao passageiro só, para poder ter frequência e velocidade“, diz.
Rafael Calabria ainda completa com a possibilidade de que o compartilhamento de linhas de cargas e passageiros seja viável, mas não nos moldes das atuais ferrovias estudadas pelo Governo Federal: “É possível ter compartilhamento longe desses centros, e não é o caso das linhas que estão propondo, saindo de Salvador, de Fortaleza, de Brasília. Nesses centros, é esperado que o projeto piloto demonstre que vai gerar conflito, atrasos. O importante no futuro é ter trens dedicados a passageiros”.
Ainda de acordo com o coordenador do Idec, o projeto em análise pelo Governo Federal demonstra certo atraso perante a necessidade de se concorrer com transportes com maior velocidade, principalmente pelo fato de as ferrovias em estudo andarem em baixa velocidade.
“Pelo tamanho do Brasil, as ferrovias de alta velocidade vão ser necessárias, mas é importante começar uma rede, mesmo que seja com esses trens locais, porque é a demanda que vai pressionar por mais infraestrutura. O problema se coloca porque o ministério não está nem se dispondo a fazer essa discussão de longo prazo, estão assumindo mesmo que só estão testando”, afirma.
Falta ambição e planejamento maiores, disponibilidade de investir recursos públicos. Toda a ação tem sido muito tímida. Claro que é um começo, mas eles não estão nem demonstrando essa ambição de ser um negócio a longo prazo, de ter alta velocidade, de disputar deslocamento com a aviação.Rafael Calabria
Coordenador de mobilidade urbana do Idec
Em nota, a Secretaria de Infraestrutura do Ceará (Seinfra) confirma que foi procurada pelo Governo Federal para fornecer informações referentes à ferrovia entre Fortaleza e Sobral. Segundo a pasta, o estudo de viabilidade da linha férrea segue em curso.
A secretaria ainda confirmou que, no caso do trajeto entre a capital cearense e o município do Interior, a ferrovia a ser utilizada para o transporte de passageiros é a que já existe entre as duas cidades, hoje administrada pela FTL.
“O projeto prevê o aproveitamento da linha da faixa de domínio já existente. Porém, só o resultado dos estudos de viabilidade poderá determinar se haverá ou não necessidade de adequações da atual via férrea“, declara a Seinfra.
Sistemas curtos, problemas prolongados
Atualmente, os dois trens com operações de passageiros no Brasil são administrados pela empresa Vale: Vitória-Minas, que liga Cariacica (ES) a Belo Horizonte (MG), com cerca de 660 quilômetros de extensão; e Carajás, que conecta São Luís (MA) a Parauapebas (PA), com quase 900 quilômetros de percurso. Ambas apresentam longa duração de viagens, e apenas o trecho no Sudeste do Brasil funciona diariamente, com somente uma frequência.
O coordenador do Idec defende que as linhas planejadas pelo Governo Federal têm a vantagem de serem bem menores, com menos da metade da distância das atuais duas linhas existentes para o segmento ferroviário de passageiros, mas alerta para que a velocidade e a frequência não devem manter a mesma característica.
“Não deve ter uma viagem tão longa pela distância, mas mesmo assim a qualidade não pode ser igual. É preciso ter uma frequência melhor para conseguir dar uma confiabilidade e dar opções de deslocamento para o cidadão poder planejar seu percurso mesmo“, observa.
Outro problema apontado é de que, nos moldes atuais, não há como sustentar um modelo de transporte de passageiros por ferrovia sem subvenção, seja ela pública ou privada. É o que explica Marcus Quintella, diretor da FGV Transportes.
“Certamente não será viável economicamente só por cobrar tarifa, isso não acontece em nenhum lugar do mundo. Tudo isso dependerá da forma de como será o modelo de negócio. Mesmo que eu conceda para a iniciativa privada, ela não vai conseguir construir a linha, operar e explorar essa linha para recuperar o dinheiro investido e manter a operação”, afirma Quinatella.
Ele completa: “Tem que ter uma modelagem financeira onde haja dinheiro público envolvido para construção, associado ou não ao dinheiro privado, e na operação tem que haver o subsídio. Tem que ter uma modelagem que sustente a construção e operação desse trem. Acho pouco provável que haja sucesso disso em um curto espaço do tempo“.
Marcus Quintella, contudo, avalia que defende que o compartilhamento de vias férreas entre cargas e passageiros pode, em um primeiro momento, ser o ideal, desde que respeitada as condições ideais de infraestrutura.
“Muito difícil existirem ou serem construídas linhas segregadas para o transporte de passageiros, como os trens de média e alta velocidade na Europa e na Ásia, que são todos eles exclusivos para passageiros. Acho um pouco provável que aqui aconteça pela rentabilidade do negócio. Tem que haver esse convívio, que requer bastante atenção em termos de via permanente, porque a carga tem muito mais peso do que o transporte de passageiros, você tem que estar sempre monitorando a via“, pontua.
O diretor da FGV Transportes rechaça que os trens de alta velocidade sejam ideais no Brasil para a locomoção de passageiros, principalmente tendo em vista a atual infraestrutura do País. Como os investimentos em ferrovias precisam trazer cifras bilionárias, bem acima das disponíveis atualmente, o especialista avalia que é preciso melhorar a malha férrea atual.
No trem de alta velocidade, tem que se construir uma ferrovia nova total que custam bilhões de dólares que alguém tem que pagar isso, e não é a tarifa. Não tem demanda que sustente esse projeto sem dinheiro público, isso não acontece em lugar nenhum do mundo.Marcus Quintella
Diretor da FGV Transportes
“Aqui no Brasil não vai ser diferente. Esses projetos estão que dizendo de trens de alta velocidade, que agora vai ressurgir da iniciativa privada, isso não vai acontecer. São bilhões de dólares, alguém vai pagar essa conta e não é o passageiro”.
O ministro Renan Filho também revelou, na última quarta-feira, que o Governo Federal poderá, pela primeira vez, fazer aporte de dinheiro público em projetos privados na área de transportes: “[Isso é] para viabilizar projetos da área de transporte privados que não sejam viáveis apenas com recursos privados. A União nunca fez isso, e especialmente para transporte ferroviário de pessoas é fundamental”.