Está previsto para o próximo 31 de janeiro a descontinuidade dos quatro hipermercados do Carrefour em todo o Ceará. Mais do que a saída da bandeira do Estado, a estratégia revela uma nova tendência de mercado, com foco maior em negócios como atacarejos (cash and carry), como explicam especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste.
“É um movimento que já tinha sido feito pelo grupo francês Casino também, quando ele decidiu fazer um investimento maior como sócio nas redes Assaí e Pão de Açúcar, que são lojas mais enxutas e com custo baixo. Aqui no Brasil a gente tem um grande movimento que o atacarejo, nos últimos dois, três anos, cresceu em cerca de 40%, 45% ao nível de faturamento bruto geral”, explica Ulysses Reis, professor de varejo da Strong Business School (SBS), instituição conveniada à Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Segundo informações obtidas pela reportagem, o Carrefour converterá três dos quatro hipermercados no Estado, todos em Fortaleza, em bandeiras diferentes. As lojas localizadas nos bairros Fátima e Maraponga adotarão a marca Atacadão, atacarejo do grupo, enquanto a unidade da avenida Washington Soares se transformará em uma unidade do clube de compras Sam’s Club. Apenas o estabelecimento localizado na avenida Bezerra de Menezes encerrará definitivamente as atividades.
Ulysses Reis destaca que a mudança está relacionada à pandemia e à consequente revolução no comportamento das compras pelo consumidor. Os hipermercados eram caracterizados por serem pequenos centros de compras, semelhantes a shoppings, com experiências mais personalizadas, mas custo mais alto frente a outros modelos de negócios, como os atacarejos.
O consumidor brasileiro, principalmente no pós-pandemia, começou a ter uma cesta de compra muito mais baseada na economia, na utilidade e na redução da procura por conforto e prestação de serviço. Nesse tipo de comportamento de compra, os atacarejos destacam-se, e o Carrefour resolveu, a partir de uma análise estratégica, que a partir desse ano ele vai dar prioridade às duas bandeiras que têm menos serviços, menos valor agregado enquanto marca e produtos premium, e tem o mix mais voltado ao abastecimento da casa.Ulysses Reis
Professor de varejo da SBS
Não só no Ceará
O consultor de empresas e professor da Faculdade CDL Christian Avesque completa que os hipermercados buscam ofertar aos consumidores experiências mais personalizadas, com decorações mais elitizadas, desde porcelanato até iluminação indireta, ao passo que os atacarejos apresentam layout de loja focado em abastecimento prático, com piso industrial e altas prateleiras.
“As lojas do Carrefour Hipermercado focam em decorações temáticas, e cada vez mais essas operações vão diminuir e ser convertidas em Atacadão ou em Sam’s Club. O modelo de operação é muito simples: é um chão industrial, produtos colocados em paletes ou em prateleiras altas, ilhas e baterias de ofertas exatamente tendo em vista a mudança no comportamento de compra. As grandes redes nordestinas, principalmente aqui no Ceará, a grande maioria tem o próprio atacarejo”, pontua.
O fim da bandeira do hipermercado Carrefour é uma tendência não apenas no Ceará, mas em diversos estados do Brasil. Bahia e Minas Gerais também terão em 31 de janeiro lojas que encerrarão as atividades. Paraíba e Pernambuco tiveram pontos do supermercado TodoDia, do grupo francês, vendidos.
Oficialmente, porém, a empresa francesa confirma apenas a conversão da loja da Maraponga. Foi a primeira a ser inaugurada no Ceará, já sob a bandeira Carrefour, em 2005. O encerramento definitivo da unidade da Bezerra de Menezes se deu por meio de lojistas que mantêm estabelecimentos no local.
A reportagem questionou a Associação Cearense de Supermercados (Acesu) sobre as conversões do Grupo Carrefour no Ceará, mas a instituição informou que prefere não se posicionar sobre o assunto.
O Grupo Carrefour Brasil também foi questionado acerca do assunto, mas até o fechamento desta reportagem, não retornou com as informações solicitadas.
Tradicionais em queda
A mudança de estratégia do Carrefour pode também ser justificada pelo balanço financeiro do grupo no Brasil do 3º trimestre de 2023, divulgado no último mês de outubro, que traz um raio-x dos diferentes tipos de negócios da empresa em relação ao mesmo período do ano anterior.
Enquanto praticamente todos os indicadores de cash and carry subiram, incluindo número de lojas físicas, vendas líquidas e lucro bruto, a situação é oposta no segmento de hipermercados. São cada vez menos unidades do grupo no setor, bem como queda expressiva nas vendas líquidas (-14,2%) e no lucro bruto (-20,6%).
“O que estava acontecendo aqui no Carrefour é o seguinte: apesar dele estar crescendo o faturamento, a rentabilidade do negócio estava caindo. Aumentou o faturamento, mas para poder vender, você tem que fazer muita promoção. Com isso, ainda continua o custo operacional alto. Então isso faz um fator estranho. Aumenta a venda, o faturamento, mas cai a lucratividade”, argumenta Ulysses Reis.
O cenário econômico negativo para os hipermercados da rede Carrefour proporcionam uma migração mais acelerada para outros tipos de negócios, principalmente os atacarejos, como classifica Randal Mesquita, especialista em varejo e serviços e diretor de educação corporativa da Associação dos Dirigentes de Vendas e Marketing do Brasil no Ceará (ADVB-CE).
“Os sucessivos resultados em queda exigem ações drásticas e a mudança de bandeira é uma dessas ações. Além disso, observamos mudanças de nomes, tamanhos, mix de produtos e até de proposta de valor, proporcionando verdadeiro reposicionamento estratégico do negócio. Uma rápida e intensa mudança nos hábitos de consumo dos cearenses que perceberam oportunidades cada vez maiores de valorizar racionalmente sua renda, optando pelas redes locais ou por operações de atacarejo, onde conseguem encontrar tudo o que precisam, pagando um preço que considera justo”, declara.
Os dados divulgados pelo Grupo Carrefour Brasil apontam uma tendência já observada pelos especialistas desde o início da pandemia: logística e comercialmente, não compensa mais manter grandes negócios físicos no País, adotando principalmente as mesmas estratégias do setor de antes de 2020.
“Antes da pandemia, a gente ganhava dinheiro no varejo de três formas: primeira, com juros altos, ou seja a pessoa comprava, pagava juro e o juro compensava o preço baixo. Você vê que todo mundo que está vendendo a juros hoje, inclusive pelo comércio eletrônico. Há uns anos, a Selic no Brasil estava 2%, hoje está acima de 11%. Segundo fator é a margem de comprar barato e vender caro. Problema foi que a pandemia tirou toda a gordura da economia. As empresas empobreceram e as pessoas também. Hoje ninguém está disposto a pagar margem alta por produto. As margens reduzirem em todas as categorias”, observa Ulysses Reis.
O Carrefour, além do hipermercado, do Atacadão e do Sam’s Club, mantém, dentre outras bandeiras em todo o País:
- Carrefour Bairro: bandeira de supermercado de proximidade;
- Carrefour Market: bandeira de minimercado;
- Carrefour Express: bandeira de loja de conveniência;
- Drogaria Carrefour: bandeira de farmácia;
- Posto Carrefour: posto de combustíveis;
Novos negócios em alta
O professor de varejo da SBS acrescenta ainda a terceira forma de se ganhar dinheiro no varejo é chamada de giro de estoque, que tem como principal exemplo de sucesso os atacarejos. Nesse sistema, como analisa Ulysses Reis, a vantagem é de uma alta rotatividade nos produtos expostos nas prateleiras a custos bem mais baixos do que de outros modelos de negócios, como hipermercados.
Compro o produto e vendo rápido. Quanto mais rápido vendo o produto, mais sobra dinheiro para reinvestir. A margem quase tradicional de venda de mercadorias para supermercadistas no Brasil está em torno de 1,5% a 4,5%. Agora como eles conseguem ganhar dinheiro? É porque durante cada seis dias, boa parte do que tem no hipermercado ou no supermercado, vende. Tenho uma situação em que, em um mês, giro a maioria do meu estoque cinco vezes e pago o fornecedor com 60 dias, ou seja, dois meses. Em um prazo de dois meses, girei dez vezes o meu estoque.Ulysses Reis
Sobre giro de estoque
A tendência mundial dos novos atacarejos ganhou uma nova roupagem no Brasil. Os atacadistas, voltados para a venda de produtos em grandes quantidades, incorporaram ainda a disponibilidade de mercadorias no varejo, além de outros serviços que não eram necessariamente ofertados nesse tipo de negócio.
De acordo com Christian Avesque, o hipermercado também tinha problemas relacionadas ao grande espaço ocioso, destinado não necessariamente a produtos que proporcionam a nova tendência mundial de giro de estoque.
“No hipermercado você tem cama, mesa e banho, eletrodomésticos, eletrônicos, materiais esportivos, pet, pneus, roupas. Esses produtos, paulatinamente, após a pandemia, os consumidores começaram comprá-los pelas lojas virtuais, recebendo em casa rapidamente. O custo de operação de manter um hipermercado com pouca venda é altíssimo. A área em que você coloca geladeiras e fogões e que não conseguem rodar, aumenta o custo final e a operação fica com margem negativa. Vale mais à pena transformar em cash and carry do que continuar sendo um hipermercado tradicional”, defende.
Para além do cash and carry
Mesmo que as vendas dos atacarejos continuem despontando como as principais no segmento supermercadista, outro setor ganha terreno com o fim dos hipermercados: os clubes de compras, representados no Grupo Carrefour Brasil com a bandeira do clube de compras Sam’s Club.
Atualmente em Fortaleza, existe apenas uma loja: ao lado do terminal do Papicu, quase em frente ao Atacadão, pertence ao mesmo grupo. Lá, o catálogo presente no site do Sam’s Club indica que os produtos do estabelecimento são similares aos ofertados pelo hipermercado, como setores de cama, mesa e banho, esporte e lazer e móveis, além de alimentos e bebidas.
A diferença fica pelos produtos importados e marcas próprias, além da necessidade de uma assinatura para realizar as compras no local. No caso do Sam’s Club, único clube do gênero em Fortaleza, o preço para a fidelização anual é de R$ 75.
“Giro de estoque é a grande jogada. No mundo, tem empresas supermercadistas que tradicionalmente vem desenvolvendo o modelo de giro de estoque. Esse modelo, com o do atacarejo, vem dando muito certo. Hoje, entre os cinco maiores varejistas do mundo têm esse modelo, e tem um outro modelo semelhante a esse que se junta que é o clube de compras. Quem mais está crescendo no mundo estão seguindo ou um modelo atacarejo ou o modelo clube de compras”, afirma Ulysses Reis.
Para Randal Mesquita, a tendência é de que principalmente as redes locais do Estado, que já estão entrando no segmento de atacarejo, passe a ofertar outras bandeiras, como as do clube de compras, focados em serviços mais personalizados para os assinantes e concorrendo com redes estrangeiras ao adotar a regionalidade.
“Podemos esperar qualificação em atendimento e serviços customizados, cada vez mais direcionados para a boa experiencia do cliente, desenvolvidos principalmente por redes locais e regionais. Veremos uma corrida ainda maior por tecnologia e inovação, qualificando a jornada do consumidor e aproximando cada vez mais fornecedores e parceiros, promovendo um eficiente e sustentável ecossistema de negócios, utilizando abundantemente BigData e IA”, projeta o professor.