Economia
Navegador, empresário e embaixador da sustentabilidade da França, Victorien Erussard dedica sua vida ao oceano e tem como propósito descarbonizar o setor marítimo. Desenvolvedor de tecnologias que estão mudando o mundo, ele concedeu entrevista exclusiva ao O Otimista
Nathália Bernardo
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Depois de sete anos navegando uma distância equivalente a três voltas ao mundo, foi entre Walvis Bay (Namíbia) e Fortaleza que o Energy Observer alcançou sua eficiência máxima. Movido a energia eólica, solar, hidrelétrica e hidrogênio, o navio do futuro chegou à costa brasileira como as caravelas do século XV, impulsionado pelos ventos alísios, que sopram constantes de leste para oeste à altura da linha do Equador.
Determinantes no passado, essas correntes se ressignificam num mundo em aquecimento, ajudando a traçar o futuro. E foi isso que o francês Victorien Erussard, de 44 anos, fundador do Energy Observer, o primeiro navio movido a hidrogênio do mundo, veio conferir no Ceará.
O barco nasceu de uma experiência pessoal. Velejador de regatas transatlânticas e oficial da marinha mercante, ele estava à deriva após uma pane no alternador a diesel quando percebeu a necessidade de embarcações autônomas em energia limpa. Assim, em 2017, no mesmo instante em que nascia o segundo de seus três filhos, Erussard lançava o Energy Observer ao mar de Saint-Malo.
As inovações embarcadas deram origem a novos negócios, como a EODev, que fabrica geradores a hidrogênio. Um novo navio também está em desenvolvimento, o cargueiro mais baixo carbono do mundo, movido a hidrogênio líquido, que deve ficar pronto em 2027. Com o propósito pessoal de descarbonizar o setor marítimo, que representa 3% das emissões globais, Erussard alerta para a corrida contra o relógio das mudanças climáticas e aponta a necessidade de investir em energia limpa. “Estamos todos viciados em energia fóssil. Nós temos energia verde, mas ela necessita de investimento”, diz ele, que é primeiro embaixador da sustentabilidade da França.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista exclusiva concedida, em francês, por Erussard na sede da TV Otimista durante sua visita ao Ceará, onde os ventos alísios também o conduziram à prática de kitesurf.
O Otimista – Como nasceu o Energy Observer?
Victorien Erussard – Eu sou realmente apaixonado pelo mar. Como oficial da marinha mercante, eu navegava em grandes navios comerciais que poluiam muito. Em paralelo, eu exercia minha paixão por barcos de regata. Eu fiz uma dezena de travessias transatlânticas e, em 2013, eu tive uma experiência ruim entre Cabo Verde e Fernando de Noronha. Eu tive um problema com o alternador do motor a diesel e não cheguei a terminar a regata. Então me disse que era lamentável confiar tanto nas fontes fósseis, sem criar um barco inteligente para estocar toda a energia que temos em torno de nós. Foi essa a ideia do Energy Observer. Eu quis deixar de lado a competição para trabalhar num projeto de interesse geral com este barco laboratório que representa as fontes de energia de amanhã. Estamos nos colocando numa situação extremamente complicada com as mudanças climáticas. Passamos cem anos perturbando o clima, usando os recursos fósseis armazenados por centenas de milhões de anos. Isso não é justo, então é preciso agir em todos os níveis. Meu propósito é descarbonizar o transporte marítimo porque eu me sentia culpado a cada vez que eu usava um barco. Com este barco é mais fácil exercer minha paixão.
O Otimista – Quais são as marcas alcançadas pelo Energy Observer?
Erussard – No início, há mais de dez anos, eu estava sozinho. Hoje somos 120 colaboradores e temos a confiança dos parceiros, dos industriais e de muita gente, o que nos permite ir mais longe na transição energética. Começamos por este pequeno barco, de 30 metros. Navegamos 60 mil milhas náuticas, equivalente a três voltas ao mundo, visitamos mais de 50 países e fizemos mais de 80 grandes escalas como aqui, em Fortaleza. Criamos uma equipe de realizadores, jornalistas e cientistas para explorar soluções sustentáveis pelo mundo. Fizemos 13 filmes para a TV e mais de 500 vídeos para a internet que apresentam iniciativas sustentáveis pioneiras.
O Otimista – O barco também deu origem aos geradores a hidrogênio, cujos primeiros do Brasil foram trazidos pela Qair ao Ceará.
Erussard – Sim, não me era suficiente contar histórias, eu queria também ações concretas, razão pela qual eu criei em 2019 uma filial que se chama EODev – Energy Observer Développement – e nós transferimos as tecnologias do barco para produzir geradores de energia a hidrogênio, permitindo substituir os geradores a diesel. Também desenvolvemos tecnologias para fazer outros pequenos barcos como o Energy Observer. Me dei conta, com a volta ao mundo, que tem muito discurso grandioso, mas poucas coisas concretas. Mas está na hora, se nós quisermos verdadeiramente atender aos limites do aquecimento global, de se mexer o mais rápido possível. Cada pessoa, mesmo em pequena escala, pode ter seu impacto.
O Otimista – Mas vocês planejam ganhar mais escala. Como está o desenvolvimento do Energy Observer 2?
Erussard – Três por cento das emissões de gás de efeito estufa do mundo estão no setor marítimo, principalmente transporte. Então o que eu projetei foi utilizar o hidrogênio para integrar os pequenos cargueiros. Ele é pequeno em comparação a outros grandes navios, mas ele tem 155 metros de comprimento e capacidade de embarcar 1.100 contêineres. Faz quase dois anos que estudamos este projeto, que reunimos parceiros técnicos e parceiros financeiros. Este barco será totalmente elétrico, o navio de carga mais baixo carbono do mundo e eu espero colocá-lo na água em 2027. Temos muitos desafios. Para começar é um barco que vai custar muito caro porque tem muita inovação, pesquisa e desenvolvimento.
O Otimista – Por que vocês elegeram o hidrogênio como combustível?
Erussard – É preciso muita energia a bordo e o hidrogênio é uma solução genial porque não emite gás de efeito estufa, nem partículas finas e, por outro lado, é o elemento químico número um, 75% da massa do universo. Este hidrogênio nós podemos utilizar em diversos estados, como na forma gasosa usada no primeiro Energy Observer. Para o navio cargueiro nós vamos liquefazer este hidrogênio, o que se faz em temperaturas muito baixas. Então é preciso desenvolver todo o ecossistema. Precisamos de energia limpa de baixo custo para eletrolisar água (H2O). Em seguida, é preciso transformar em líquido e direcionar para um terminal e alimentar o navio. Existem algumas empresas que trabalham com hidrogênio líquido, principalmente no setor aeroespacial. Quando partirmos de Fortaleza, vamos à Guiana Francesa, onde seremos recebidos pelo Centro Espacial de Kourou e pela Agência Espacial Europeia para uma troca de conhecimentos. O segredo é criar um projeto, criar sinergia e garantir que todos trabalhem juntos para alcançá-lo. Eu quero provar que é possível.
O Otimista – É viável descarbonizar em curto/médio prazo o transporte marítimo?
Erussard – É economicamente complicado, mas é possível. Com a multiplicação das aplicações, a gente espera ter combustíveis um pouco mais competitivos perante as energias fósseis. O complicado é que temos muita energia fóssil, que é barata. Somos acostumados com isso. Estamos todos viciados em energia fóssil. Nós temos energia verde, mas ela necessita de muitos investimentos e isso custa caro. A transição energética vai necessitar de inteligência, mais eficácia e menos consumo.
O Otimista – Como você avalia o papel do Brasil na transição energética global?
Erussard – Eu vim à Fortaleza porque os franceses adoram o Brasil. É um país enorme e exemplar em termos de produção de energia elétrica a partir de fontes renováveis. É um campeão em hidroeletricidade, em biocombustíveis e está a caminho de se tornar um campeão em energia solar e eólica. Aqui tem um potencial fantástico que não temos na Europa. É realmente interessante ver o que se passa aqui. Eu gostei muito da navegação do Energy Observer entre o continente africano e a América do Sul, especialmente nossa chegada a Fortaleza. Nós usamos as rotas marinhas que os navegadores, principalmente os portugueses, utilizavam nos séculos XV. É uma rota ideal porque é econômica em energia, o barco fez performances incríveis. Como temos vento e sol, não usamos hidrogênio, tivemos um excedente na produção de energia. Essa região tem sempre vento e sol. Vocês têm um território que se destaca no mundo inteiro para a produção de hidrogênio verde, permitindo descarbonizar a indústria e a mobilidade. Então quisemos vir conferir isso.
O Otimista – O Brasil, principalmente o Ceará, tem muitos projetos de hidrogênio verde. O que você considera fundamental para o sucesso dessas iniciativas?
Erussard – A União Européia tem se mexido para garantir investimentos públicos. Tem muito dinheiro voltado à criação de parques industriais para a produção de hidrogênio em todo lugar. Não temos terrenos como no Brasil, mas todo mundo se mexe. Todo mundo se move também para criar novos textos, novas leis e novas regulamentações. Espero que o Brasil siga este caminho porque é muito complexo desenvolver este projetos. Aqui, no Ceará, tem dezenas de projetos e eles vão precisar de colaboração entre as instituições – governo, investidores privados, industriais e até os consumidores – para se concretizarem e acelerarem a transição energética. Não podemos mais nos permitir esperar, precisamos agir agora.
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Embarque no Energy Observer
O Grupo Otimista de Comunicação estará embarcado no Energy Observer para uma navegação científica de três semanas pelos mares Caribe. A jornalista Nathália Bernardo será a primeira brasileira a bordo do navio francês e vai compartilhar, em tempo real, o cotidiano, as descobertas e as curiosidades da navegação em todas as plataformas do Grupo. O embarque acontece no dia 7 de fevereiro em Fort-de-France, na Martinica.
